Um sábio cruzou-se, um dia, nos arredores de uma velha cidade do Oriente, com um grupo de cegos que tagarelavam, batiam com os pés, se descompunham, em grande algazarra.
– É um pilar! — afirmava um deles.
– Nada disso! Nada disso! É um tapete! — garantia o outro.
– Imbecis! — berrava um terceiro. — Vocês não perceberam nada: é um tubo!
Estalavam os insultos e as afirmações contraditórias.
– Miseráveis ignorantes! Pois eu digo-vos que é uma parede!…
– Uma estátua!…
– Um ramo!…
– Um regador!…
Que grande gritaria!
O sábio aproximou-se e procurou acalmar os espíritos, para se fazer ouvir.
– Nenhum de vocês tem razão — explicou. — O objecto das vossas discussões infantis é, na realidade, um elefante, mas conforme lhe tocais numa orelha, na tromba, numa das patas, etc., assim vos persuadis de segurar, este aqui, um tapete, o outro, um tubo, o outro ainda, um pilar, e assim por diante…
A maior parte dos cegos não acreditou nele, e continuaram a discutir uns com os outros.
Esta fábula é muito conhecida no Oriente e serve para ilustrar uma das ideias fundamentais das civilizações da Ásia: o homem comum vive num mundo particular, pessoal, subjectivo. É cego, presa de angústias e violências. O sábio vive num mundo aberto, objectivo, impessoal. Só ele vê a realidade, tal como ela é, só ele é perfeitamente feliz, sereno, liberto.
E, de súbito, temos a impressão de que entre a nossa sensibilidade, a nossa cultura, o nosso ponto de vista de Ocidentais e o encadeamento do pensamento oriental, se ergue uma montanha tão colossal e intransponível como os Himalaias.
Na nossa sensibilidade, tudo se recusa e se revolta, radicalmente, contra tais afirmações. Como? Atrevem-se a apresentar-me como o mais elevado ideal humano concebível, um estado «objectivo», impessoal, isto é, «despersonalizado», e, portanto, de indiferença, de neutralidade, de descomprometimento, de secura, e até de falta de elevação? E pensa-se, de imediato, numa espécie de lavagem ao cérebro que leva à idiotia, à negação, ao vazio.
«É que faço questão, acima de tudo, da minha personalidade! Faço questão das minhas emoções, dos meus entusiasmos, das minhas tormentas, e até mesmo dos meus desastres! É tão interessante — e insubstituível! Não constitui ela, aliás, a base, a substância mesma de toda a invenção, de toda a criação? Faço questão dos meus desejos, dos meus temores, dos meus sonhos, na sua fórmula específica e original!»
Reside aqui a dificuldade. A nossa civilização, sobretudo depois da Renascença, estabeleceu um culto do ego, uma autêntica religião do eu, que, progressivamente, se substituiu ao sagrado, no sentido tradicional do termo. O próprio sagrado se viu, pouco a pouco, assimilado a um prolongamento, uma exaltação particular desse eu. A psicologia tomou, completamente, o passo da mística, e a mística viu-se reduzida a uma simples categoria do psicológico.
«Eu me… o meu cabeleireiro, o meu médico, o meu avião, as minhas férias, os meus amigos, o meu trabalho, a minha família, os meus problemas, o meu carácter…» Tudo, na nossa educação, nos nossos medias, nos nossos lazeres, tende a glorificar, a exacerbar o papel e a importância exclusiva do eu, do ego, do indivíduo, numa invasão, cada vez maior, do vedetismo, dos ídolos da actualidade política ou artística, num culto da personalidade.
O único deus que, hoje em dia, no Ocidente, se pode considerar reconhecido por todos chama-se psicologia. Claro, há matizes, escolas, dissidentes. Mas todos, extremistas, centristas, de esquerda, de direita, crentes, ateus, todos — quer estejam na indústria, no comércio, na função pública, quer na imprensa ou nas profissões liberais — se esforçam por orientar as suas acções, decisões e comportamentos a partir dos dados da psicologia. A psicoterapia substituiu a confissão e a oração. Os testes, as técnicas de orientação, a caracterologia, dominam os negócios, a política, a publicidade. Já só se fala de equilíbrio, de adaptação, de motivação, de desenvolvimento. Tornou-se de uso corrente uma certa linguagem psicanalítica. Fala-se de inconsciente, de refluxo, de frustração, de transfert.
Enfim, a nossa velha astrologia é, ela própria e cada vez mais, admitida como um ramo da psicologia, uma região limítrofe, ainda um tanto incerta, nebulosa e povoada de miragens — mas, apesar de tudo, uma província do império. Acrescentarei que, na maior parte dos casos, nos é quase impossível ter em vista outra coisa. O que poderia ser um mundo sem o psicológico, ou para lá do psicológico?
A esta questão, que nos parece tão incongruente, mesmo absurda, traz o Oriente uma resposta — sempre a mesma, de há muitos séculos a esta parte, embora sob múltiplas formas, religiões, práticas e métodos que se chamam ioga, vedantismo, tantrismo tibetano, budismo zen, tauismo, para apenas citar os mais célebres.
Esta resposta pode ser formulada nestes termos: o homem conhecerá um estado de plenitude, de beatitude perfeita e sem limites, de despertar e de libertação absolutos, se destruir o processo do eu todo-poderoso, se dissipar a ilusão do ego, fonte de todos os sofrimentos.
Reside aqui a diferença essencial. Sejam quais forem os seus métodos e as suas convicções, um psicólogo ou psicoterapeuta ocidental proclama: «Procuremos adaptar-nos melhor aos conflitos, às tensões, às contradições, para estarmos mais em harmonia, melhor dentro da nossa pele, mais aptos a dar o melhor de nós próprios.»
O sábio, o iogui, o lama, o monge zen ou tauista, replica: «Mesmo que consigais obter êxito, haverá sempre conflito, tensão, contradição. Para que servem tantos esforços obstinados se o sofrimento acabará sempre por renascer, com o fluxo incessante dos desejos e dos medos que são a substância mesma deste eu, deste ego? O verdadeiro problema não é o de sonhar um pouco melhor ou um pouco menos mal, mas o de se despertar. A nossa solução é infinitamente mais ambiciosa e mais radical. Suprimi a ilusão do eu e suprimireis o sofrimento…»
O nosso espírito ocidental volta, de novo, a insurgir-se. O que é que nos querem dizer com essa da «ilusão do ego»? Eu penso, eu sinto, eu amo ou não amo, sinto calor, tenho frio, tenho fome, sinto-me mal, sinto prazer, sofro. Tudo isto sou eu mesmo e nenhum outro. Onde é que está a ilusão?
Claro, não podemos pretender, numas tantas linhas, resumir todos os pensamentos profundos e subtis do Oriente milenário. Sublinhemos apenas alguns pontos.
Dizer «eu» significa que existe, de um lado, o que experimento e se define como eu e depois, em frente ou do lado de fora, tudo o resto, o mundo, os outros. O interior e o exterior, o que é eu e o que não é eu. Eu — o meu corpo, as minhas emoções, os meus pensamentos. O resto — esta cadeira, aquelas pessoas que passam, aquelas estrelas no céu. Entre eu e não eu existe separação, fractura, um abismo sem fundo, e é precisamente característica da condição humana esta parede estanque que me encerra, para sempre, na prisão da minha individualidade e dos mecanismos psicológicos a que estou submetido. Isto parece evidente.
Ora tal evidência — que é o nosso credo de Ocidentais e inspirou imensas obras-primas artísticas e literárias — é categoricamente negada pela sabedoria oriental. Mais ainda, ela vê precisamente nisso o mal-entendido, o erro, a mentira, a ilusão inicial e fatal.
De facto, o universo e eu não constituímos mais do que uma única e mesma realidade, ao mesmo tempo instável, inconstante e indivisível. Sou o produto químico, biológico, histórico, da totalidade dos instantes e de fenómenos que me precederam e moldaram, do mais pequeno acto às mais distantes galáxias. Sou o ar que respiro, os alimentos que absorvo, as sensações que experimento, as palavras que pronuncio, e as que registo. A partir de onde, de quando, posso eu estabelecer uma fronteira, uma demarcação?
Na verdade, só há separação na consciência que tenho de uma separação.
Ao contemplar uma galáxia distante, onde é que termina o meu olhar, onde é que começa a luz dessa galáxia?
O erro e o sofrimento começam desde que me apercebo de que: «Existe uma dualidade, há eu e o resto, eu e qualquer outra coisa…» Toda a mensagem da sabedoria oriental consiste em reencontrar o caminho da unificação, da realidade indivisível e indivisa, ou, ainda, do eu real e original, não sujeito aos fraccionamentos do espaço, do tempo e da causalidade, porque inclui todos, engloba todos. Claro, este eu real e unificado não pode ser assimilado nem ao corpo, nem às emoções, nem aos pensamentos, em contínuas flutuações e metamorfoses.
É um tanto como o écran do cinema, cuja pureza não pode ser atingida pelas balas das metralhadoras nem alterada pelos furores do filme em exibição — ou como o silêncio, idêntico a si mesmo antes e depois dos gritos e dos tumultos.
Poderá este estado ser vivido e realizado — para além das especulações intelectuais excitantes para o espírito, mas impotentes para transformar a nossa existência?
Tal é o formidável desafio da sabedoria oriental. Tal é o objecto de todas as práticas, técnicas de despertar e de meditação, ensinadas há gerações pelos mestres hinduístas, budistas e tauistas.
Este texto, escrito por Patrick Ravignant, foi selecionado da Introdução que fez ao livro «Astrologia Chinesa» de Catherine Aubier, lançado originalmente em 1981.